O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, mostra a sociedade portuguesa daquela época (início do século XVI), e, mais do que isso, faz uma crítica social em relação aos costumes dessa sociedade. Com uma divisão clara das personagens por meio de suas classes e credos, o Auto é, basicamente, um julgamento final dessas pessoas e sua conseqüente condenação ou absolvição. A história inicia-se num porto no qual há duas barcas, uma cujo destino é o Inferno, e a outra o Paraíso. Várias personagens chegam a esse lugar, começando pelo fidalgo, que por sua tirania, orgulho e soberba, é condenado; segue-se então um onzeneiro que é condenado também por sua ganância; a seguir vem o parvo, que é absolvido, por não ter havido malícia em seus atos passados; vários então vieram e foram condenados: o sapateiro, que se aproveitou de seus clientes, roubando assim seu dinheiro; o frade, que, mesmo sendo um frade, desrespeitou seu voto de castidade; a alcoviteira, com seus pecados vários; o judeu, por não ser cristão; o corregedor e o procurador, que não fizeram o que se comprometeram a fazer: justiça; o enforcado, que, por não ter fé, é condenado; e, por fim, os Quatro Cavaleiros, que morreram por Jesus Cristo (lutaram nas cruzadas), e foram absolvidos. É um Auto da moralidade, no qual o autor expõe sua visão do que é ou não imoral. Com um toque cômico bem acentuado, mostra todos os “defeitos” da sociedade, desde o fidalgo, com toda sua soberba, ou o onzeneiro, com sua ganância, até a alcoviteira, também conhecida como cafetã. Nota-se também certa dualidade entre as personagens, dividindo-se entre os nobres e os do povo; no povo percebe-se uma fé mais pura, menos ambiciosa, já nos nobres vê-se que olham a religiosidade apenas como uma moeda, como algo que podem trocar pelo seu cantinho no céu, e quando chegam ao juízo final, se deparam com o verdadeiro peso de seus pecados. Nessa obra pode parecer que se julga apenas pela pessoa em si, por seu caráter, independentemente de sua classe social ou qualquer outra coisa, como quando o fidalgo é condenado, mesmo tendo uma alta posição na sociedade, por causa de seus pecados (tirania, orgulho, soberba...), ou quando a batina do frade em nada ajuda, pois o peso de seus pecados é maior; porém, por trás dessa máscara de justiça, há os próprios preconceitos do autor, que estrutura sua obra de tal maneira, nomeando a maioria das personagens de acordo com sua classe social ou profissão, que simplesmente generaliza, e leva todos os fidalgos, ou todos os frades, à fogueira. Além disso, condena também um judeu apenas por sua religião não ser o Cristianismo, mostrando assim que ele também devia entrar nesse porto para ser julgado, e, com certeza, de acordo com as regras estabelecidas em sua obra, seria condenado.

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