Uma estória sobre crianças e escolas para pais e professores

ALVES, Rubem. Pinóquio às avessas: uma estória sobre crianças e escolas para pais e professores. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.

O autor inicia sua obra com uma citação de Fernando Pessoa: “Sou o intervalo entre meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim”, o que retrata toda a intencionalidade da sua proposta. Antes de começar a história propriamente dita, explica a causa que o motivou a escrevê-la e remetendo a uma cena do passado, montando um quebra-cabeça da história do Pinóquio com seus pais, que o faz refletir sobre todas as histórias infantis e seus finais distorcidos na atualidade. Daí nasce o questionamento: “A história do Pinóquio, me parece, ensina que as crianças nascem de pau e, só depois de passarem pela escola, ficam crianças de verdade. Se não passarem pela escola, correm o risco de se tornar jumentinhos, com rabo e orelhas de burro, além de zurrar”. É com base referencial, dessa história contada às avessas, que Rubem Alves com uma leitura poética e prazerosa leva a refletir tão desarmadamente sobre questões já tão debatidas, mas ainda atuais, em busca de mudanças: a importância da contribuição da educação informal dos pais para a transformação da criança para a vida.
Refletindo sobre as histórias infantis, o autor questiona sobre a moral distorcida de algumas, mas se detém na história do Pinóquio, que trata exatamente da temática relação escola–aprendizagem. Em sua proposta às avessas, inicia a história transformando o boneco de pau, Pinóquio, em menino de carne e osso. E cria os personagens: o pai e um filho, Felipe, que estabelecem um diálogo com reflexões sobre a necessidade de ir à escola para obter a condição de aprendizagem e passar a ser gente de verdade. A não-ida o faz vítima de um castigo como o de Pinóquio: tornar-se burro. O que desperta na criança, mesmo sem entender muito, a importância de ir à escola. Sendo esta a condição necessária para ser gente... E a preocupação de ainda não ser gente pelo fato de ainda não ter ido à escola.
Após a introdução necessária para o entendimento da proposta, o autor distancia-se um pouco da história do Pinóquio como base referencial e avança diretamente para a abordagem temática da relação educação–pais–escolas–professores e a formação da criança. Começa pela questão sobre toda a expectativa criada pelos pais para o futuro dos filhos, logo ao nascerem, pautadas apenas em seus desejos, que eles transformam em planos, mas não comunicam ao primeiro interessado: o filho. Por outro lado, a criança, por desconhecer os sonhos e planos de seus pais quanto ao seu futuro, vive intensamente o presente, na perspectiva de construir seu futuro através da curiosidade, que lhe é nata, para a aprendizagem do mundo.
Em seguida, o autor aborda a postura dos adultos (pais) quanto ao impedimento da construção do entendimento do mundo pela criança e sua total falta de preparo para participar dessa construção. Os adultos não sabem responder às questões desconhecidas pelas crianças... E, como não bastasse, fazem o seguinte encaminhamento: “...quando nem seu pai nem sua mãe sabiam as respostas para suas perguntas, eles diziam: ‘Na escola, você aprenderá...’. E Felipe dormia feliz, pensando: ‘A escola deve ser um lugar maravilhoso! Lá os professores responderão as minhas perguntas...’”. Com isso, o autor faz uma reflexão: as crianças perguntam exatamente o que eles não sabem? Como não sabem se foram à escola? Ou a escola a que foram não ensina tudo isso...? E, para “resolver” essa questão, os pais criam novas expectativas nas crianças: “Você aprenderá isso na escola”.
Pode considerar um excelente ponto de reflexão: enquanto adultos (pais), como ou quanto está preparado para responder um “não” óbvio? Se obtiveram uma educação que motivasse sua curiosidade ou se simplesmente foram educados para saber o que pais, escolas e professores acreditam que é certo e necessário para ser gente e um adulto de sucesso? Responsabilizar a escola resolve a questão ou a piora mais ainda?
Novamente, o autor desperta para a discussão sobre a postura dos adultos (pais) nas intervenções da formação educacional das crianças. É muito comum os adultos perguntarem o que a criança quer ser quando crescer e, logo em seguida, limitarem o futuro dela a um “adulto que trabalha”, como a única e última opção na vida, além de associarem essa condição ao papel e à responsabilidade da escola. Nesse sentido, faz-se uma reflexão quanto ao despreparo, por exemplo, quando antecipa-se um futuro sem considerar primeiro os desejos e sonhos em potencial da criança, e, logo em seguida, limita-o do entendimento da vida, quando presta-se a informações distorcidas sobre o papel e a responsabilidade da escola na formação do adulto. Faz-se necessário repensar essas intervenções, que, em vez de contribuírem para o entendimento do mundo, criam mais expectativas que tão logo são questionadas pelas crianças e transformadas em frustrações.
Em seguida a essa proposta de reflexão, o autor contextualiza o processo de avaliação na perspectiva do aprendizado para a vida, através de índices numéricos, conteúdos programados e decisões quanto à vida da criança e dos adultos. Embora o diálogo ainda seja entre pai e filho, o autor já avança para questões focadas nas responsabilidades da escola — nesse caso, o processo de avaliação. Nesse momento, ele desperta para a discussão da prática da/do escola/professor, que propõe uma educação para a vida e, ao mesmo tempo, desenvolve processos de avaliação que restringem o aprendizado a um número (nota) e o seu desenvolvimento a decisões quantificadas e padronizadas, o que, a maioria das vezes, nem mesmo admite. Mas o faz.
Novamente, a escola é questionada. E faz-se uma reflexão sobre até que ponto tem consciência dessa distorção. E, sabe, que por insistir em praticá-las? Por fim, o que pode ser feito para mudar efetivamente essa prática desalinhada com as propostas que são defendidas? Ou são pseudopropostas?
No contexto escolar, o autor passa o diálogo para o personagem Felipe, em reflexão, para questionar sobre a estrutura das escolas que dizem formar crianças para a vida. Em suas reflexões e seus sonhos, o personagem compara a estrutura das escolas com gaiolas e as crianças-alunos com pássaros, pondo em discussão a organização disciplinar rígida, começando pelo formato da “casa”, que é o ambiente escolar, seguido dos procedimentos das atividades disciplinares sinalizadas e terminando pela exigência do cumprimento dessas normas e regras pertinentes às escolas para a formação do adulto.
Mais uma vez, o autor desperta para rever a incoerência do conjunto estrutural do ambiente de formação para a vida: normas, regras, exigências de cumprimento e nenhuma flexibilidade, em contraponto à necessidade das crianças de praticarem sua curiosidade. O autor traz para reflexão o modelo de “casa” em que acredi1ta-se ser uma formação para a vida. E questiona, através do personagem: “Onde fica o respeito às diferenças individuais?”.
O ponto de reflexão avança para os programas curriculares. E, através do personagem Felipe, em suas perguntas e seus sonhos, o autor desperta para uma avaliação sobre os programas curriculares formatados para serem ensinados a todos e ao mesmo tempo organizados em conteúdos que deverão ser ensinados desarticuladamente por professores específicos, mas no mesmo tempo e ritmo para todas as crianças. A discussão é: teoriza-se tanto a diversidade na sala de aula, vivem-se tanto as diferenças individuais, defende-se mais ainda a necessidade do respeito ao ritmo de cada criança e por que se pratica a padronização tanto na aplicação de conteúdos como na velocidade da aprendizagem? Por que é entendido tão bem essas questões teoricamente e praticada o inverso?
Sendo necessário uma reflexão sobre o que se entende por proposta curricular, como deve ser aplicada e que resultados devem ser alcançados. Nesse questionamento, o autor foca o professor, seu papel, seu saber teórico e a aplicabilidade prática do que ele ensina. Onde e em que está a falha? Na formação da criança? Na formação acadêmica dos professores? Nas exigências do cumprimento das normas e regras governamentais? Ou em todas as alternativas?
Nessa perspectiva, o autor faz um convite para um aprofundamento da reflexão sobre a discussão dos programas curriculares, o não-respeito à individualidade das crianças no processo de aprendizagem e a padronização de metas de ensino.
Nesse sentido, deve - se compreender que, na condição de boneco, o aluno não pode voar em busca da realização de seus desejos e sonhos, quando da construção do conhecimento do mundo. Como boneco, não pode pensar a não ser naquilo que o professor ensina. Não pode criar, porque é proibido fazer diferente do que já existe pronto. Tem de obedecer ao pronto, padronizado, determinado por outros, que nem mesmo o conhecem, sob a ameaça de virar burro, sem direito a fada madrinha..., para sempre.
Por fim, o autor pontua com muita propriedade os resultados que serão obtidos se continuar com a prática de uma proposta de educação “formatada” no ambiente escolar, na perspectiva de transformar crianças criativas em adultos bonecos, para manipulação, a serviço do mercado de trabalho.
Pode - se concluir que, simplesmente, a proposta do Rubem Alves é maravilhosa! Pinóquio às Avessas: uma Estória sobre Crianças e Escolas para Pais e Professores é uma forma sutil de encaminhar pais e professores a reflexões tão difíceis, até mesmo, de se aceitar. Mas, poética, carinhosa e precisamente pontuada, torna-se inquestionável a evidência da necessidade de refletir na perspectiva de avanços para mudanças efetivas.

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